terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

"Elegia do amor" - Poema de Teixeira de Pascoaes


Théodore Ralli (1852-1909), The Kiss, 1887



Elegia do amor

I

Lembras-te, meu amor, 
Das tardes outonais, 
Em que íamos os dois, 
Sozinhos, passear, 
Para fora do povo 
Alegre e dos casais, 
Onde só Deus pudesse 
Ouvir-nos conversar? 
Tu levavas, na mão, 
Um lírio enamorado, 
E davas-me o teu braço; 
E eu triste, meditava 
Na vida, em Deus, em ti...
E, além, o sol doirado 
Morria, conhecendo 
A noite que deixava. 
Harmonias astrais 
Beijavam teus ouvidos; 
Um crepúsculo terno 
E doce diluía, 
Na sombra, o teu perfil 
E os montes doloridos...
Erravam, pelo Azul, 
Canções do fim do dia. 
Canções que, de tão longe, 
O vento vagabundo 
Trazia, na memória...
Assim o que partiu 
Em frágil caravela, 
E andou por todo o mundo, 
Traz, no seu coração, 
A imagem do que viu. 
Olhavas para mim, 
Às vezes, distraída, 
Como quem olha o mar, 
À tarde, dos rochedos...
E eu ficava a sonhar, 
Qual névoa adormecida, 
Quando o vento também 
Dorme nos arvoredos. 
Olhavas para mim...
Meu corpo rude e bruto 
Vibrava, como a onda 
A alar-se em nevoeiro. 
Olhavas, descuidada 
E triste... Ainda hoje te escuto 
A música ideal 
Do teu olhar primeiro! 
Ouço bem a tua voz, 
Vejo melhor teu rosto 
No silêncio sem fim, 
Na escuridão completa! 
Ouço-te em minha dor, 
Ouço-te em meu desgosto 
E na minha esperança 
Eterna de poeta! 
O sol morria, ao longe; 
E a sombra da tristeza 
Velava, com amor, 
Nossas doridas frontes. 
Hora em que a flor medita 
E a pedra chora e reza, 
E desmaiam de mágoa 
As cristalinas fontes. 
Hora santa e perfeita, 
Em que íamos, sozinhos, 
Felizes, através 
Da aldeia muda e calma, 
Mãos dadas, a sonhar, 
Ao longo dos caminhos...
Tudo, em volta de nós, 
Tinha um aspecto de alma. 
Tudo era sentimento, 
Amor e piedade. 
A folha que tombava 
Era alma que subia...
E, sob os nossos pés, 
A terra era saudade, 
A pedra comoção 
E o pó melancolia. 
Falavas duma estrela 
E deste bosque em flor; 
Dos ceguinhos sem pão, 
Dos pobres sem um manto. 
Em cada tua palavra, 
Havia etérea dor; 
Por isso, a tua voz 
Me impressionava tanto! 
E punha-me a cismar 
Que eras tão boa e pura, 
Que, muito em breve – sim! -, 
Te chamaria o céu! 
E soluçava, ao ver-te 
Alguma sombra escura, 
Na fronte, que o luar 
Cobria, como um véu. 
A tua palidez 
Que medo me causava! 
Teu corpo fino 
E leve (oh meu desgosto!) 
Que eu tremia, ao sentir 
O vento que passava! 
Caía-me, na alma, 
A neve do teu rosto. 
Como eu ficava mudo 
E triste, sobre a terra! 
E uma vez, quando a noite 
Amortalhava a aldeia, 
Tu gritaste, de susto, 
Olhando para a serra: 
- Que incêndio! – E eu, a rir, 
Disse-te: - É a lua cheia!... 
E sorriste também 
Do teu engano. A lua 
Ergueu a branca fronte, 
Acima dos pinhais, 
Tão ébria de esplendor, 
Tão casta e irmã da tua, 
Que eu beijei, sem querer, 
Seus raios virginais. 
E a lua, para nós, 
Os braços estendeu. 
Uniu-nos num abraço, 
Espiritual, profundo; 
E levou-nos assim, 
Com ela, até ao céu...
Mas, ai, tu não voltaste 
E eu regressei ao mundo.

II

Um raio de luar, 
Entrando, de improviso, 
No meu quarto sombrio, 
Onde medito, a sós, 
Deixa, a tremer, no ar, 
Um pálido sorriso, 
Um murmúrio de luz 
Que lembra a tua voz... 
O Outono, que derrama 
Ideal melancolia 
Nas almas sem amor, 
Nos troncos sem folhagem, 
Deixa a vibrar, em mim,
Saudosa melodia, 
Dolorida canção, 
Que lembra a tua imagem. 
A noite, que escurece 
Os vales e os outeiros, 
E que acende, num bosque, 
A voz do rouxinol 
E a estrela que protege 
E guia os pegureiros; 
A lágrima do céu 
Ao ver morrer o sol, 
Acorda, no meu peito,
Infinda e etérea dor, 
Que à memória me traz 
A luz do teu olhar... 
Tudo de ti me fala, 
Ó meu longínquo amor: 
As árvores, a névoa, 
Os rouxinóis e o mar. 
Se passo por um lírio, 
Às vezes, distraído, 
Chama por mim, dizendo: 
"Oh! Não te esqueças dela!" 
Diz-mo também, chorando 
O vento dolorido. 
Diz-mo a fonte, a cantar, 
Diz-mo, a brilhar, a estrela. 
E vejo, em toda a luz, 
Teus olhos a fulgir. 
Como adivinho, em tudo, 
A alma que perdi! 
Não encontro uma flor, 
Sem o teu nome ouvir. 
Não posso olhar o céu, 
Sem me lembrar de ti! 
Por isso, eu amo o pobre, 
O triste e a Natureza, 
A mãe da humana dor, 
Da dor de Deus a filha. 
Meu coração, ao pé 
Dum pobrezinho, reza; 
Canta, ao lado dum ninho, 
Ao pé da estrela, brilha. 
O meu amor por ti, 
Meu bem, minha saudade, 
Ampliou-se até Deus, 
Os astros alcançou. 
Beijo o rochedo e a flor, 
A noite e a claridade. 
São estes, sobre o mundo, 
Os beijos que te dou. 
Hás-de senti-los, sim, 
Doce mulher de outrora. 
Ó roxo lírio de hoje, 
Ó nuvem actual! 
Como dantes teu rosto, 
A rosa ainda hoje cora; 
Beijo-te, sim, beijando 
A rosa virginal. 
Teu espectro divaga, 
Ao longo dos espaços. 
Teu amor, feito luz, 
Desce do Firmamento. 
Se abraço um verde tronco, 
Eu sinto, entre os meus braços, 
Teu corpo estremecer, 
Como uma flor, ao vento. 
Soluça a tua dor 
Nas infinitas mágoas, 
Que, no fumo da tarde, 
Eu vejo, além, subir... 
E paira a tua voz 
No marulhar das águas, 
No murmúrio que sai
Das pétalas a abrir. 
Se os lábios vou molhar 
Nas ondas duma fonte, 
Queimam meu coração 
Tuas lágrimas salgadas. 
E, quando acaricia 
O vento a minha fronte, 
Eu bem sinto, sobre ela, 
As tuas mãos sagradas. 
Quando a lua, no outono, 
Envolta em luz funérea, 
Morta, vai a boiar 
Nas águas do Infinito, 
Doira meu frio rosto 
A palidez etérea, 
Que dantes emanava 
O teu perfil bendito. 
Quando, em manhãs d'Abril, 
Acordo, de repente, 
E vejo, no meu quarto, 
O sol entrar, sorrindo, 
Julgo ver, ante mim, 
Teu corpo resplendente, 
Tua trança de luz, 
Teu gesto suave e lindo. 
Descubro-te, mulher, 
Na Natureza inteira, 
Porque entendo a floresta, 
A névoa, o céu doirado, 
A estrela a arder, no Azul, 
A lenha, na lareira 
E o lírio que, na cruz 
Do outono, está pregado. 
Falas comigo, sim, 
Da dor, do bem, de Deus... 
Repartes o meu pão, 
Amor, pelos ceguinhos... 
E pelas solidões 
Os pobres versos meus, 
Como os pobres que vão, 
A orar, pelos caminhos. 
És a minha ternura, 
A minha piedade, 
Pois tudo me comove! 
O zéfiro mais leve 
Acende, no meu peito, 
Infinda claridade; 
E a brancura do lírio 
Enche meu ser de neve. 
Todo eu fico a cismar 
Na louca voz do vento, 
Na atitude serena 
E estranha duma serra; 
No delírio do mar, 
Na paz do Firmamento 
E na nuvem, que estende 
As asas, sobre a terra. 
Todo eu fico a cismar, 
Assim como que esquecido, 
Ante a flor virginal 
E o sol enamorado. 
Ante o luar que nasce, 
Ao longe, dolorido, 
Dando às cousas um ar 
Tão triste e macerado. 
Todo eu medito e cismo... 
Um vago e etéreo laço 
Prende-me ao teu imenso 
E livre coração, 
Que abrange o mundo inteiro 
E ocupa todo o espaço, 
E que vai povoar 
A minha solidão. 
Por isso, eu vivo sempre, 
Em doce companhia, 
Com o pobre que pede 
E a estrela que fulgura; 
E, assim, a minha alma, 
Igual à luz do dia 
Derrama-se, no céu, 
Em ondas de ternura. 
Sou como a chuva e o vento 
E a sombra duma cruz! 
Lira, que a mais suave 
Aragem faz vibrar... 
Água que, ao luar brando, 
Em nuvens se traduz; 
Fruto que amadurece, 
À luz dum claro olhar... 
Pedra que um beijo funde 
E místico vapor, 
Que um hálito condensa 
Em pura gota de água... 
Sou aroma que um ai 
Encarna em triste flor; 
Riso que muda em choro 
A mais pequena mágoa. 
Vivo a vida infinita, 
Eterna, esplendorosa. 
Sou neblina, sou ave, 
Estrela, Azul sem fim, 
Só porque, um dia, tu, 
Mulher misteriosa, 
Por acaso, talvez, 
Olhaste para mim.


Teixeira de Pascoaes, 
in 'Prosa e Poesia' 


Teixeira de Pascoaes, pseudónimo literário de Joaquim Pereira Teixeira de Vasconcelos, (Amarante, 8 de Novembro de 1877 — Gatão, 14 de Dezembro de 1952) foi um poeta e escritor português, principal representante do Saudosismo. 


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