quinta-feira, 15 de março de 2012

"Ela canta, pobre ceifeira" - Poema de Fernando Pessoa


William-Adolphe Bouguereau, O jarro quebrado, 1891 
 
 
Ela canta, pobre ceifeira 


Ela canta, pobre ceifeira, 
Julgando-se feliz talvez; 
Canta, e ceifa, e a sua voz, cheia 
De alegre e anónima viuvez, 

Ondula como um canto de ave 
No ar limpo como um limiar, 
E há curvas no enredo suave 
Do som que ela tem a cantar. 

Ouvi-la alegra e entristece, 
Na sua voz há o campo e a lida, 
E canta como se tivesse 
Mais razões para cantar que a vida. 

Ah, canta, canta sem razão! 
O que em mim sente está pensando. 
Derrama no meu coração 
A tua incerta voz ondeando! 

Ah, poder ser tu, sendo eu! 
Ter a tua alegre inconsciência, 
E a consciência disso! Ó céu! 
Ó campo! Ó canção! A ciência 

Pesa tanto e a vida é tão breve! 
Entrai por mim dentro! Tornai 
Minha alma a vossa sombra leve! 
Depois, levando-me, passai!




Pintura de William-Adolphe Bouguereau


William-Adolphe Bouguereau (La Rochelle, 30 de novembro de 1825 — La Rochelle, 19 de agosto de 1905) foi um professor e pintor académico francês.

Com um talento manifesto desde a infância, recebeu treinamento artístico numa das mais prestigiadas escolas de arte de seu tempo, a Escola de Belas Artes de Paris, onde veio a ser mais tarde professor muito requisitado, ensinando também na Academia Julian, outra instituição famosa. Sua carreira floresceu no período áureo do academismo, sistema de ensino do qual foi um ardente defensor e do qual foi um dos mais típicos representantes. Sua pintura caracteriza-se pelo perfeito domínio da forma e da técnica, com um acabamento de alta qualidade, obtendo efeitos de grande realismo. Em termos de estilo, fez parte da corrente eclética que dominou a segunda metade do século XIX, mesclando elementos do neoclassicismo e do romantismo numa abordagem naturalista com boa dose de idealismo. Deixou obra vasta, centrada nos temas mitológicos, alegóricos, históricos e religiosos, nos retratos, nos nus e nas imagens de jovens camponesas.
Acumulou fortuna e granjeou fama internacional em vida, recebendo inúmeros prémios e condecorações, como Prémio de Roma e a Legião de Honra, mas no final de sua carreira começou a ser desacreditado pelos pré-modernistas. A partir do início do século XX, logo após sua morte, sua obra foi rapidamente esquecida, chegando a ser considerada de todo vazia e artificial, e um modelo de tudo o que a arte não deveria ser, mas na década de 1970 começou a ser novamente apreciada, e hoje é considerado um dos grandes pintores do século XIX. No entanto, ainda existe bastante resistência ao seu trabalho, permanecendo a polémica em seu redor. Foi casado duas vezes, tendo cinco filhos, dos quais apenas um sobreviveu a ele.


Pintura de William-Adolphne Bouguereau 

(Movimento estético: Academicismo)


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