quinta-feira, 8 de março de 2012

"Portugal" - Poema de Guerra Junqueiro


Leonel Marques Pereira (1828 – 1892), Os Reis D. Luís I e D. Maria Pia, 1872, 
  Palácio Nacional da Ajuda



Portugal


Maior do que nós, simples mortais, este gigante 
foi da glória dum povo o semideus radiante. 
Cavaleiro e pastor, lavrador e soldado, 
seu torrão dilatou, inóspito montado, 
numa pátria... E que pátria! A mais formosa e linda 
que ondas do mar e luz do luar viram ainda! 
Campos claros de milho moço e trigo loiro; 
hortas a rir; vergéis noivando em frutos de oiro; 
trilos de rouxinóis; revoadas de andorinhas; 
nos vinhedos, pombais: nos montes, ermidinhas; 
gados nédios; colinas brancas olorosas; 
cheiro de sol, cheiro de mel, cheiro de rosas; 
selvas fundas, nevados píncaros, outeiros 
de olivais; por nogais, frautas de pegureiros; 
rios, noras gemendo, azenhas nas levadas; 
eiras de sonho, grutas de génios e de fadas: 
riso, abundância, amor, concórdia, Juventude: 
e entre a harmonia virgiliana um povo rude, 
um povo montanhês e heróico à beira-mar, 
sob a graça de Deus a cantar e a lavrar! 
Pátria feita lavrando e batalhando: aldeias 
conchegadinhas sempre ao torreão de ameias. 
Cada vila um castelo. As cidades defesas 
por muralhas, bastiões, barbacãs, fortalezas; 
e, a dar fé, a dar vigor, a dar o alento, 
grimpas de catedrais, zimbórios de convento, 
campanários de igreja humilde, erguendo à luz, 
num abraço infinito, os dois braços da cruz! 
E ele, o herói imortal duma empresa tamanha, 
em seu tuguriozinho alegre na montanha 
simples vivia? paz grandiosa, augusta e mansa! 
sob o burel o arnês, junto do arado a lança. 
Ao pálido esplendor do ocaso na arribana, 
di-lo-íeis, sentado à porta da choupana, 
ermitão misterioso, extático vidente, 
olhos no mar, a olhar sonambolicamente... 
«Águas sem fim! Ondas sem fim! Que mundos novos 
de estranhas plantas e animais, de estranhos povos, 
ilhas verdes além... para além dessa bruma, 
diademadas de aurora, embaladas de espuma! 
Oh, quem fora, através de ventos e procelas, 
numa barca ligeira, ao vento abrindo as velas, 
a demandar as ilhas de oiro fulgurantes, 
onde sonham anões, onde vivem gigantes, 
onde há topázios e esmeraldas a granel, 
noites de Olimpo e beijos de âmbar e de mel!» 
E cismava, e cismava... As nuvens eram frotas, 
navegando em silêncio a paragens ignotas...? 
«Ir com elas...Fugir...Fugir!...» Uma manhã, 
louco, machado em punho, a golpes de titã, 
abateu, impiedoso, o roble familiar, 
há mil anos guardando o colmo do seu lar. 
Fez do tronco num dia uma barca veleira, 
um anjo à proa, a cruz de Cristo na bandeira... 
Manhã de heróis... levantou ferro... e, visionário, 
sobre as águas de Deus foi cumprir seu fadário. 
Multidões acudindo ululavam de espanto. 
Velhos de barbas centenárias, rosto em pranto, 
braços hirtos de dor, chamavam-no... Jamais! 
Não voltaria mais! Oh! Jamais! Nunca mais! 
E a barquinha, galgando a vastidão imensa, 
ia como encantada e levada suspensa 
para a quimera astral, a músicas de Orfeus: 
o seu rumo era a luz; seu piloto era Deus! 
Anos depois, volvia à mesma praia enfim 
uma galera de oiro e ébano e marfim, 
atulhando, a estoirar, o profundo porão 
diamantes de Golconda e rubins de Ceilão!


in 'Pátria' 


Leonel Marques Mendes (1828 – 1892), Festa na aldeia, c. 1870-75, Museu do Chiado


"Quem olha para fora, sonha. Quem olha para dentro, acorda."



Sem comentários: