sexta-feira, 26 de abril de 2013

"Grande Amor" - Poema de Cruz e Souza


Ilustração de Coles Phillips (1880-1928) 



Grande Amor 


Grande amor, grande amor, grande mistério
Que as nossas almas trémulas enlaça...
Céu que nos beija, céu que nos abraça
Num abismo de luz profundo e sério.

Eterno espasmo de um desejo etéreo
E bálsamo dos bálsamos da graça,
Chama secreta que nas almas passa
E deixa nelas um clarão sidéreo.

Cântico de anjos e de arcanjos vagos
Junto às águas sonâmbulas de lagos,
Sob as claras estrelas desprendido...

Selo perpétuo, puro e peregrino
Que prende as almas num igual destino,
Num beijo fecundado num gemido.


Cruz e Sousa


João da Cruz e Sousa


Nascido há 152 anos no porão de um velho sobrado pertencente a um militar que lutou na Guerra do Paraguai, na antiga ilha de (Nossa Senhora do Desterro (atual  Florianópolis), na província de Santa Catarina, João da Cruz e Sousa (24-11-1861/19-03-1898) é hoje, sem sombra de dúvida, a maior referência da chamada escola simbolista brasileira, mas não é só. O seu legado literário — seja como poeta, seja como jornalista — soma-se à sua militância política durante o processo abolicionista, sobretudo após a eclosão desse movimento, que, em maio de 1888, teve nele um dos mais ardorosos próceres. Some-se a isso também a sua jornada existencial, em que uma falsa ideia de liberdade, igualdade e fraternidade — lema revolucionário, de origem francesa, difundido e defendido por ele — caiu totalmente por terra, sobretudo após o advento da República, de coloração positivista.

Cruz e Sousa, negro e filho de escravos, criado sob o forte regime escravista, foi educado nos moldes do padrão europeu, no Ateneu Provincial Catarinense, sob a tutela dos padres e dos catedráticos, mas jamais deixou de pensar e sentir como africano — ou agir, na esteira dos demais, como um dos seus descendentes. Na terra natal, mesmo na fase estudantil, tornou-se um caso raro entre os colegas do educandário, pela dedicação e pelo aproveitamento, apesar de ser aluno externo e filho de um “pobre jornaleiro, que tudo sacrifica pela educação dos filhos”.

Era aluno aplicado, um dos melhores de sua turma, derrubando, com o seu exemplo, estereótipos racistas em grande voga na época, sobretudo por meio de Cesare Lombroso, defensor da tese do “criminoso nato”, mas que no fundo atribuía erroneamente aos negros, especialmente aos negros, a pecha da incapacidade do aprendizado científico e da falta do desenvolvimento intelectual. Sociedade local não admitia ver um “negro letrado”

A militância literária e política de Cruz e Sousa teve início durante a juventude. Começou a escrever para a imprensa local, publicando poesia e prosa, esta no formato de contos e crônicas. A prática jornalística o fez sonhar com o poder e a glória. Num arroubo de entusiasmo, diante do sucesso de suas conquistas, teria dito, num tom meio profético e desafiador, à noiva desterrense: “Hei de morrer, mas hei de deixar nome!” ou “Ainda hei de governar Santa Catarina!”.

Desenvolto e compenetrado, não percebia a sorrateira calda dos inimigos que lhe rondavam, prontos para aplicar o bote fatal: era visto como um negro moleque, pernóstico, folgado. Surgem daí as consequências: o irmão Norberto, embora tenha tido, como ele, sólida formação, precisou trabalhar como tanoeiro para sobreviver; a mãe, Carolina Eva da Conceição, passou a ser dispensada das casas das patroas, que não admitiam ver nos jornais os textos abolicionistas do filho da empregada, passadeira e quituteira. O próprio jornal que editava, “O Moleque”, deixou de constar na lista de convidados da comunidade francesa, no aniversário da Bastilha, pela razão de ser seu editor um homem negro.

Em um dos seus famosos sonetos, escrito já no final da vida, dizia: “Vê como a Dor te transcendentaliza!/ Mas do fundo da Dor crê nobremente./ Transfigura o teu ser na força crente/ Que tudo torna belo e diviniza.” Desde cedo, provou das agruras e da reação preconceituosa que a sua luta provocava. Mas não estava só. Relacionava-se com a comunidade familiar negra da ilha, que lhe ouvia ao piano, ou interagia com os jovens artistas de sua geração, que queriam espanar da terra a poeira da imbecilidade e da pieguice. Sabia que pagaria alto preço por suas ousadias, traduzidos no fechamento de portas de cargos públicos, censuras e deboches pelos jornais.
Sobreviver a isso era uma tarefa nem sempre prazerosa e fácil: a sociedade não admitia ver um negro elegante, falante e letrado, sem sotaques regionais, envolvido com a política e com as letras clássicas. Por que ele não enxergava, de fato, o seu lugar? Por que ele, afinal, não agia à luz dos seus irmãos de cor? Mas Cruz e Sousa, o negro provocador, sempre tocava na mesma tecla, em seus eloquentes discursos: “Não se liberta o escravo por pose, por chiquismo, para que pareça a gente brasileira elegante e graciosa ante as nações disciplinadas e cultas. Não se compreende, nem se adaptando ao meio humanista, a palavra escravo, não se compreende da mesma forma a palavra senhor”. Não! Cruz e Sousa estava fadado a grandes voos. As provações da vida, que não lhe foram poucas, iriam persegui-lo até a hora da morte.

O fazer literário tornou-se para Cruz e Sousa um meio de vida e uma obsessão. Não que, ao transferir-se para o Rio de Janeiro, então capital da República, onde logo se casou com a preta Gavita, dispensasse o magro emprego de Arquivista da 5 Divisão da Estrada de Ferro Central do Brasil. Mas gostava de fazer o que lhe dava mais prazer. Na repartição pública, a toda hora, precisava se livrar de um chefe mulato e racista. “É que eu lhe recordo a origem — dizia o poeta —, tenho talvez a mesma cor da mãe.” A chatura do emprego, as dificuldades financeiras, a família numerosa, a ronda da miséria cada vez mais próxima faziam com que a roda literária e a boemia do centro da cidade lhe oferecesse melhor regalo e conforto de espírito. Mas não convivia, como podia se supor, com os grandes: Machado de Assis, Olavo Bilac, Araripe Júnior, Graça Aranha, Artur Azevedo, José Veríssimo, Raimundo Correa ou José do Patrocínio. Ao contrário, sua roda de escritores era praticamente anônima e muitos, por incrível que pareça, nem obra publicada tinham: Oscar Rosas, Alvares de Azevedo Sobrinho, Pardal Mallet, Emiliano Pernetta, Virgílio Várzea, Araújo Figueredo, B. Lopes, Emilio de Meneses, entre outros.
A esta “plêiade” (para empregar um termo muito usado pelos parnasianos) é que Cruz e Sousa se liga no Rio de Janeiro para alçar o almejado voo literário e artístico. Dotado de grande talento imaginativo, consegue criar uma literatura de sugestão, de nuance, de plena sonoridade, de teor do vago, do indefinido e da espiritualidade, e que, no rastro da literatura portuguesa de Antero de Quental e Cesário Verde, ou francesa de Mallarmé e Baudelaire, absorveu o cromatismo dos nossos trópicos e se transformou, pela linguagem, carregada dos vestígios bantos, na ancestralidade do seu sangue africano, numa poesia nova, sensualizada e sonora: “Vozes veladas, veludosas vozes,/ Volúpias dos violões, vozes veladas,/ Vagam nos velhos vórtices velozes/ Dos ventos vivas, vãs, vulcanizadas”.

Lutando contra o meio adverso, estabeleceu uma guerrilha literária, à moda que empreendeu na província onde nasceu. Com isso, sofreu os reveses do aguerrido combate, ficando de fora do grupo de fundadores da Academia Brasileira de Letras, liderado por Machado e Lúcio de Mendonça, e que convidou para a Casa um Graça Aranha, à época sem qualquer livro publicado, enquanto Cruz e Sousa havia lançado, num único ano, o “Missal”, de prosa, e os “Broquéis”, de versos, ambos considerados inauguradores do simbolismo no Brasil.

Isolamento no fim da vida não diminuiu combatividade
. A glória de Cruz e Sousa veio mesmo depois da sua morte. Magoado e só, restava ao poeta negro apenas cuidar da família e escrever, escrever, sem dar trégua para a tuberculose que lhe minava o organismo, agravada após os seis meses de loucura da mulher. O vate não se cansava de protestar, de pedir justiça, de cobrar responsabilidade dos poderosos. Sentindo que todos os olhos estavam voltados contra si, a imprensa amordaçada nas mãos do grupo rival, pouco lhe restava como alternativa à sua criação e à veiculação de sua profícua produção.

Já no final dos seus dias, alimenta ainda mais sua dor e seu ódio (“Ó meu ódio, meu ódio majestoso”, cantava no soneto “Ódio sagrado”). A doença faz dele um homem amargo e soturno, visionário, tornando a sua poesia noturna e levemente trágica. É nesse momento que se fecha, se enclausura, trancando-se na Torre de Marfim da sua criação e do seu isolamento. Vê-se ferido (“Alma ferida pelas negras lanças/ Da Desgraça, ferida do Destino,/ Alma a que as amarguras tecem o hino/ Sombrio das cruéis desesperanças”) e emparedado dentro do seu próprio sonho.

UELINTON FARIAS ALVES é jornalista e escritor, autor da biografia “Cruz e Sousa: Dante Negro do Brasil” (Pallas Editora, 2008), entre outros livros. (Daqui)



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