sexta-feira, 19 de julho de 2013

"Os Tentáculos da Escrita" - Texto de Ana Hatherly


Hieronymus Bosch, São João Batista no Deserto, c. 1489, Museo Lázaro Galdiano, Madrid 
 
[João Batista, aqui numa representação de Hieronymus Bosch, na transição entre o  Judaísmo e o Cristianismo, é um exemplo do homem que procura a santidade através da renúncia ao alimento e à sensualidade.]



Os Tentáculos da Escrita



A escrita é um polvo, um molusco versátil. Tem infinitos recursos. Escapa sempre. Abstratiza-se. Disfarça-se, adensa-se, adelgaça-se, esconde-se. Impele-se rápida. Compreende tudo: ascese, consolo íntimo, entrega; fluxos, refluxos, invasões, esvaziamentos, obstinação feroz. O seu rigor é místico. É uma infinita demanda. Perscruta o inaudito. Sideral Alice atravessa todas as portas, todos os espelhos. Cruza, descobre, inventa universos. A escrita é um fragmento do espanto, já alguém o disse.

Ana Hatherly, in 'Tisanas'


Hieronymus Bosch, A Estrada da Vida, c. de 1516
Museu do Prado, Madrid, Espanha
 

 Jerónimo Bosch
 

Pintor holandês, Hieronymus Bosch pertencia a uma família de pintores, tendo nascido em 1450 e vindo a falecer em 1516, em Hertogenbosch, que atualmente faz parte da Holanda. Os dados biográficos e a cronologia da sua obra são frequentemente hipotéticos. Fazia parte da Confraria de Nossa Senhora e desde muito jovem a sua pintura demonstrou uma força singular.

No sentido da composição, na expressão da luz, na ilusão de profundidade, tem como referências o trabalho de Jan Van Eyck, mas antecipa igualmente a evolução da pintura dos finais do século XVI. 
 
Tematicamente, refletiu as conceções religiosas medievais. A "tentação" é o assunto principal da obra de Bosch, abordado no tríptico Tentações de Santo Antão (1500?) e desenvolvido mais cabalmente na obra-prima O Jardim das Delícias.
 
A eterna luta entre o Bem e o Mal é protagonizada por figuras fantásticas, disformes, demónios e visões que representam as aberrações humanas - o que não está muito distante do procedimento de Erasmo em Elogio da Loucura.

As raízes do seu trabalho podem ser encontradas na magia, na alquimia, no misticismo, no teatro, possuindo uma carga simbólica por vezes indecifrável. Para o observador atual, esta pintura surge como uma antecipação do Surrealismo. O impacto da sua mensagem através do tempo só é explicável, contudo, por se apoiar numa mestria formal notável. (Daqui)
 
 

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