domingo, 30 de março de 2014

"A Imortalidade" - Texto de Jorge Luís Borges


Pintura de Carlos Calvet


A Imortalidade 


"Ser imortal é coisa sem importância. Exceto o homem, todas as criaturas o são, porque ignoram a morte. O divino, o terrível, o incompreensível, é considerar-se imortal. Já notei que, embora desagrade às religiões, essa convicção é raríssima. Israelitas, cristãos e muçulmanos professam a imortalidade, mas a veneração que dedicam ao primeiro século prova que apenas creem nele, e destinam todos os outros, em número infinito, para o premiar ou para o castigar. 

Mais razoável me parece o círculo descrito por certas religiões do Indostão. Nesse círculo, que não tem princípio nem fim, cada vida é uma consequência da anterior e engendra a seguinte, mas nenhuma determina o conjunto... Doutrinada por um exercício de séculos, a república dos homens imortais tinha conseguido a perfeição da tolerância e quase do desdém. Sabia que num prazo infinito ocorrem a qualquer homem todas as coisas. Pelas suas passadas ou futuras virtudes, qualquer homem é credor de toda a bondade, mas também de toda a traição pelas suas infâmias do passado ou do futuro. Assim como nos jogos de azar as cifras pares e ímpares permitem o equilíbrio, assim também se anulam e se corrigem o engenho e a estupidez. 

(...) Ninguém é alguém, um único homem imortal é todos os outros homens. Como Cornelio Agrippa, sou deus, sou herói, sou filósofo, sou demónio e sou o mundo, o que é uma forma cansativa de dizer que não sou. 

(...) A morte (ou a sua alusão) torna os homens delicados e patéticos. Estes comovem-se pela sua condição de fantasmas. Cada ato que executam pode ser o último. Não há um rosto que não esteja por se desfigurar como o rosto de um sonho. Tudo, entre os mortais, tem o valor do irrecuperável e do perdido. Entre os Imortais, pelo contrário, cada ato (e cada pensamento) é o eco de outros que no passado o antecederam, sem princípio visível, ou o claro presságio de outros que, no futuro, o repetirão até à vertigem. Não há coisa que não esteja perdida entre infatigáveis espelhos. Nada pode ocorrer uma só vez, nada é primorosamente gratuito. O elegíaco, o grave, o cerimonial, não contam para os Imortais. Homero e eu separamo-nos nas portas de Tânger. Creio que não nos despedimos."

Jorge Luis Borges, in "O Imortal"

  [Jorge Francisco Isidoro Luis Borges Acevedo Buenos Aires, 24 de agosto de 1899Genebra, 14 de junho de 1986) foi um escritor, poeta, tradutor, crítico literário e ensaísta argentino.]


Carlos Calvet

Carlos Calvet, O Lápis Revelador, 1967


 Carlos Frederico Pereira de Sequeira Bramão Calvet da Costa (Lisboa, 1928 — ) é um arquiteto, artista plástico e pintor português.
Licenciado em arquitetura pela Escola de Belas Artes do Porto, a sua atividade abarca também a pintura, fotografia e cinema.
Dedica-se à pintura desde muito cedo (c. 1944), expondo pela primeira vez em 1947, na 2ª Exposição Geral de Artes Plásticas, Sociedade Nacional de Belas Artes, Lisboa.
A sua obra inicial revela interesse particular pelo cubismo de Braque (as suas naturezas-mortas atestam este interesse). Aproxima-se do surrealismo embora sem assumir oficialmente e ligação ao movimento; realiza cadavre-exquis com António Areal e Mário-Henrique Leiria, e curtas-metragens, uma das quais com a participação de Mário Cesarini.
A sua afirmação no meio artístico português acontece nos anos de 1960, quando realiza obras que "se situam entre um informalismo de definição orgânica, próximo da abstração gestual", em paralelo com outras mais próximas da abstração hard-edge. Em meados dessa década fixa as premissas essenciais da obra futura, abordando um tipo de figuração conotado com a arte pop "à qual se junta um paisagismo onírico e metafísico" (veja-se, por exemplo, Misterioso, Ousa, 1978).


Carlos Calvet, Misterioso, Ousa, 1978, óleo sobre platex, 84 x 122 cm


Povoadas por formas geométricas, por "estranhas arquiteturas e perspetivas, escalas e enquadramentos insólitos", a que se associam "objetos do quotidiano cuja significação transcende a habitual", as suas obras tanto podem transmitir-nos momentos de ironia como alusões a ameaças apocalípticas e maus presságios... E as frequentes referências esotéricas conferem a muitas pinturas um caráter obscuro, hermético.


Carlos Calvet, A Força do Destino, 1996, Óleo S/Tela, 73x100cm


Carlos Calvet, Rebelião, 2008


Carlos Calvet, A Ira, 2008


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