domingo, 3 de agosto de 2014

"O riso é o melhor indicador da alma" - Texto de Fiódor Dostoiévski


Joaquín Sorolla y Bastida, Girl with flowers



O riso é o melhor indicador da alma 


Acho que, na maioria dos casos, quando uma pessoa se ri torna-se nojento olharmos para ela. Manifesta-se no riso das pessoas, na maioria das vezes, qualquer coisa de grosseiro que humilha a quem ri, embora essa pessoa quase nunca saiba que efeito o seu riso provoca. Tal como não sabe (ninguém sabe, aliás) a cara que faz quando dorme. Há quem mantenha no sono uma cara inteligente, mas outros há que, embora inteligentes, fazem uma cara tão estúpida a dormir que se torna ridícula.

Não sei por que tal acontece, apenas quero salientar que a pessoa que ri, tal como a pessoa que dorme, não sabe a cara que faz. De uma maneira geral, há muitíssimas pessoas que não sabem rir. Aliás, isso não é coisa que se aprenda: é um dom, não se pode aperfeiçoar o riso. A não ser que nos reeduquemos interiormente, que nos desenvolvamos para melhor e que superemos os maus instintos do nosso carácter: então também o riso poderá possivelmente mudar para melhor. A pessoa manifesta no riso aquilo que é, é possível conhecermos num instante todos os seus segredos. Mesmo o riso incontestavelmente inteligente é, às vezes, abominável. O riso exige em primeiro lugar sinceridade, mas onde está a sinceridade das pessoas? O riso exige a ausência de maldade, mas as pessoas, na maioria dos casos, riem com maldade. Um riso sincero e sem maldade é uma pura alegria, mas, nos tempos que correm, onde está a alegria? E poderão as pessoas ser alegres?

A alegria é um dos mais reveladores traços humanos, basta a alegria para revelar as pessoas dos pés à cabeça. Por vezes não há meio de percebermos o caráter de uma pessoa, mas basta ela rir para lhe conhecermos o feitio como às palmas das nossas mãos. Só as pessoas desenvolvidas do modo mais elevado e feliz sabem ser contagiosamente alegres, de uma maneira irresistível e benévola. Não falo de desenvolvimento intelectual, mas de caráter, do homem como um todo. Portanto: se quiserdes compreender uma pessoa e conhecer-lhe a alma não presteis atenção à sua maneira de se calar, ou de falar, ou de chorar, ou de se emocionar com as ideias mais nobres, olhai antes para ela quando se ri. Ri-se bem - é boa pessoa.

Observai depois todos os matizes: por exemplo, é preciso que o riso não pareça estúpido, por mais alegre e ingénuo que seja. Mal deteteis a mais pequena nota de estupidez num riso, ficai sabendo que a pessoa que assim ri é intelectualmente limitada, apesar de deitar cá para fora um sem-fim de ideias. Mesmo que o riso não seja estúpido, se vos parecer ridículo, nem que seja um pouquinho, ficai sabendo que não há na pessoa que o ri uma verdadeira dignidade, pelo menos uma dignidade suficiente. Por último, notai que, mesmo que um riso seja contagioso mas por qualquer razão vos pareça vulgar, também a natureza dessa pessoa é vulgar, que toda a nobreza e espírito sublime que tínheis visto nela ou são fingidos ou imitados inconscientemente, e que essa pessoa, no futuro, mudará inevitavelmente para pior, dedicar-se-á ao «útil», abandonando sem pena as ideias nobres como sendo erros e paixões da juventude.

(...) Apenas entendo que o riso é a mais certeira prova da alma. Olhai para uma criança: só as crianças sabem rir com perfeição, por isso são fascinantes. É abominável a criança que chora, mas a que ri alegremente é um raio do paraíso, é o futuro do homem quando ele, finalmente, se tornar tão puro e ingénuo como uma criança.

Fiódor Dostoiévski, in 'O Adolescente'


Joaquin Sorolla y Bastida, The Bath, Jávea, 1905


"Conhecemos um homem pelo seu riso. Se na primeira vez que o encontramos ele ri de maneira agradável, o íntimo é excelente." 

Fiódor Dostoiévsky


Fiódor Mikhailovich Dostoiévski, Moscovo, 30 de Outubro (c. juliano) / 11 de Novembro de 1821 — São Petersburgo, 28 de Janeiro (c. juliano) / 9 de Fevereiro de 1881) – ocasionalmente grafado como Dostoievsky – foi um escritor russo, considerado um dos maiores romancistas da literatura russa e um dos mais inovadores artistas de todos os tempos. É tido como o fundador do existencialismo, mais frequentemente por Notas do Subterrâneo, descrito por Walter Kaufmann como a "melhor proposta para existencialismo já escrita."

Sua mãe morreu quando ele era ainda muito jovem e seu pai, o médico Mikhail Dostoievski, foi assassinato pelos próprios colonos de sua propriedade rural em Daravoi, que o julgavam autoritário. Esse facto exerceu enorme influência sobre o futuro do jovem Dostoiévski e motivou o polémico artigo de Freud: "Dostoiévski e o Parricídio".

Em São Petersburgo, Dostoiévski estudou engenharia numa escola militar e se entregou à leitura dos grandes escritores de sua época. Epilético, teve sua primeira crise depois de saber que seu pai fora assassinado. Sua primeira produção literária, aos 23 anos, foi uma tradução de Balzac ("Eugénie Grandet"). No ano seguinte escreveu seu primeiro romance, "Pobre Gente", que foi bem recebido pelo público e pela crítica.

Em 1849 foi preso por participar de reuniões subversivas na casa de um revolucionário, e condenado à morte. No último momento, teve a pena comutada por Nicolau I da Rússia e passou nove anos na Sibéria, quatro no presídio de Omsk e mais cinco como soldado raso. Descreveu a terrível experiência no livro "Recordações da Casa dos Mortos" e em "Memórias do Subsolo".

"No verão, confinamento intolerável, no inverno, frio insuportável. Todos os pisos estavam podres. A sujeira no chão tinha uma polegada de espessura; alguém poderia tropeçar e cair… Éramos empilhados como anéis de um barril… Nem sequer havia lugar para caminhar… Era impossível não se comportar como suínos, desde o amanhecer até o pôr do sol. Pulgas, piolhos, besouros a celemim." – Dostoiévski sobre seu local de prisão.

Suas crises sistemáticas de epilepsia, que ele atribuía a "uma experiência com Deus", tiveram papel importante em suas crenças. Inspirado pelo cristianismo evangélico, passou a pregar a solidariedade como principal valor da cultura eslava.

Em 1857 casou-se com Maria Dmitrievna Issaiev, uma viúva difícil e caprichosa. Dois anos depois retornou a Petersburgo. Em 1862 conheceu Polina Suslova, que viria a ser o seu romance mais profundo. Em 1864, viúvo de Maria, terminou seu caso com Polina e em 1867 casou-se com Anna Snitkina.


Anna, segunda esposa.


Anna e filhos


A obra dostoievskiana explora a autodestruição, a humilhação e o assassinato, além de analisar estados patológicos que levam ao suicídio, à loucura e ao homicídio: seus escritos são chamados por isso de "romances de ideias", pela retratação filosófica e atemporal dessas situações. O modernismo literário e várias escolas da teologia e psicologia foram influenciadas por suas ideias.

Dostoiévski logrou atingir certo sucesso com seu primeiro romance, Gente Pobre, que foi imediatamente muito elogiado pelo poeta Aleksandr Nekrassov e por um dos mais importantes críticos da primeira metade do século XIX, Vladimir Belinski. Porém, o escritor não conseguiu repetir o sucesso até o retorno à Sibéria, quando escreveu o semibiográfico Recordações da Casa dos Mortos, sobre a prisão que sofrera. Posteriormente sua fama aumentaria, principalmente graças a Crime e Castigo. Seu último romance, Os Irmãos Karamazov, foi considerado por Sigmund Freud como o melhor romance já escrito. 

Perigoso, segundo Stálin, até 1953 o currículo soviético para estudos universitários sobre o escritor o classificava como "expressão da ideologia reacionária burguesa individualista". Segundo ele mesmo, seu mal era uma doença chamada consciência.

A obra de Dostoiévski exerce uma grande influência no romance moderno, legando-lhe um estilo caótico, desordenado e que apresenta uma realidade alucinada.
Publicou também contos e novelas. Criou duas revistas literárias e ainda colaborou nos principais órgãos da imprensa russa.


Principais obras:

- Gente Pobre (1846)
- O sonho do príncipe (1859)
Humilhados e Ofendidos (1861)
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Recordações da Casa dos Mortos (1862)
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Memórias do Subsolo (1864)
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Crime e Castigo (1866)
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O Jogador (1867)
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O Idiota (1869)
O Eterno Marido (1870) 
- Os Demónios (1872)
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O Adolescente (1875)
-
Os Irmãos Karamazov (1881)

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