quinta-feira, 24 de novembro de 2016

"Versos da Bela Adormecida" - Poema de José Régio


Salvador Dalí, O Nascimento dos Desejos Líquidos, 1932 



Versos da Bela Adormecida


Lá longe, muito longe, ai, muito longe!, ao fundo
De areias e gelos do cabo do mundo,
Depois de ralos, aflições, suores, dragões, ciladas, perigos,
E bosques tenebrosos, antigos, antigos.

Sonhei que ela me espera, adormecida
Desde o começo da vida,
Nua, deitada sobre as tranças de oiro,
Guardada para mim como um tesoiro.

Sonhei que um nimbo argênteo a veste,
Raiando o céu de norte a sul, de leste a oeste,
E que sobre ela paira o silêncio profundo
Dos gelos e areias do cabo do mundo...

No seu lábio, um sorriso ainda transido
Ficou, como na boca das estátuas, esculpido,
Esperando, talvez, para raiar,
Que ela suba as pestanas, devagar...

Vi uma vez, em sonhos vi, que aquelas pálpebras se erguiam,
Sim, devagar..., sim, devagar..., e que os seus lábios me diziam,
Estendidos para mim:
-- «Chegaste?, chegaste enfim?

E eu soluçava: -- «Sim, sou eu...!
«Mas tu..., és tu, bem tu, Porta do Céu?!
«És tu, ou não és mais que mais uma miragem
«Das tantas que encontrei pela viagem?

«Ai, que de vezes já supus que te possuía
«Em uma imagem que afinal era vazia, era vazia!
«E que longe, afinal, te não venho encontrar,
«Que passei ermos, passei montes, passei pegos, passei mar...»

Foi isto em sonhos. Acordado, eu perguntava: -- «Que farei?
«Aonde... a que longe irei,
«Para que vos atinja, ó silêncios sem fundo
«De areias e gelos do cabo do mundo?

«Anjos, demónios, serafins de asas de lanças e cabelos
«De chamas e serpentes aos novelos,
«Génios que em sonhos me guiais!:
«Já me não bastam sonhos! Quero mais.

«Quero, através seja de que desertos,
«Chegar a ver, com olhos bem despertos,
«O resplendor que sei que a veste,
«Raiando o céu de norte a sul, de leste a oeste...»

Assim falei. Ninguém, porém, me mostrou ter ouvido.
Meu grito, além, se extinguiu já, perdido...
E eu morro deste ardor, que nada acalma,
Com que aspiro debalde à minha própria alma.


José Régio, As Encruzilhadas de Deus (1936)


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