terça-feira, 28 de fevereiro de 2017

"Os Arlequins" (Sátira) - Poema de Machado de Assis


Paul Cézanne (Francês, 1839 - 1906), Arlequim, 1888-90,



Os Arlequins 
(Sátira)


Musa, depõe a lira! 
Cantos de amor, cantos de glória esquece! 
Novo assunto aparece 
Que o génio move e a indignação inspira. 
Esta esfera é mais vasta, 
E vence a letra nova a letra antiga! 
Musa, toma a vergasta, 
E os arlequins fustiga! 

Como aos olhos de Roma, 
— Cadáver do que foi, pávido império 
De Caio e de Tibério, — 
O filho de Agripina ousado assoma; 
E a lira sobraçando, 
Ante o povo idiota e amedrontado, 
Pedia, ameaçando, 
O aplauso acostumado; 

E o povo que beijava 
Outrora ao deus Calígula o vestido, 
De novo submetido 
Ao régio saltimbanco o aplauso dava. 
E tu, tu não te abrias, 
Ó céu de Roma, à cena degradante! 
E tu, tu não caías, 
Ó raio chamejante! 

Tal na história que passa 
Neste de luzes século famoso, 
O engenho portentoso 
Sabe iludir a néscia populaça; 
Não busca o mal tecido 
Canto de outrora; a moderna insolência 
Não encanta o ouvido, 
Fascina a consciência! 

Vede; o aspecto vistoso, 
O olhar seguro, altivo e penetrante, 
E certo ar arrogante 
Que impõe com aparências de assombroso; 
Não vacila, não tomba, 
Caminha sobre a corda firme e alerta: 
Tem consigo a maromba 
E a ovação é certa. 

Tamanha gentileza, 
Tal segurança, ostentação tão grande, 
A multidão expande 
Com ares de legítima grandeza. 
O gosto pervertido 
Acha o sublime neste abatimento, 
E dá-lhe agradecido 
O louro e o monumento. 

Do saber, da virtude, 
Logra fazer, em prémio dos trabalhos, 
Um manto de retalhos 
Que a consciência universal ilude. 
Não cora, não se peja 
Do papel, nem da máscara indecente, 
E ainda inspira inveja 
Esta glória insolente! 

Não são contrastes novos; 
Já vem de longe; e de remotos dias 
Tornam em cinzas frias 
O amor da pátria e as ilusões dos povos. 
Torpe ambição sem peias 
De mocidade em mocidade corre, 
E o culto das ideias 
Treme, convulsa e morre. 

Que sonho apetecido 
Leva o ânimo vil a tais empresas? 
O sonho das baixezas: 
Um fumo que se esvai e um vão ruído; 
Uma sombra ilusória 
Que a turba adora ignorante e rude; 
E a esta infausta glória 
Imola-se a virtude. 

A tão estranha liça 
Chega a hora por fim do encerramento, 
E lá soa o momento 
Em que reluz a espada da justiça. 
Então, musa da história, 
Abres o grande livro, e sem detença 
À envilecida glória 
Fulminas a sentença. 


 in 'Crisálidas', 1864


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