domingo, 22 de outubro de 2017

"O passarinho preso" - Poema de Manuel Maria Barbosa du Bocage


Charles Spencelayh (English painter, 1865–1958) 



O passarinho preso


Na gaiola empoleirado,
um mimoso passarinho
trinava brandos queixumes
com saudades do seu ninho.

«Nasci para ser escravo
(carpia o cantor plumoso),
não há ninguém neste mundo,
que seja tão desditoso.

Que é do tempo, que eu passava,
ora descantando amores,
ora brincando nos ares,
ora pousando entre flores?

Mal haja a minha imprudência,
mal haja o visco traidor;
um raio, um raio te abrase,
fraudulento caçador!

Em que pequei? Porventura
fiz-te à seara algum mal?
Encetei, mordi teus frutos,
como o daninho pardal?

Agrestes, incultas plantas
produziam o meu sustento
inútil aos que se prezam
do alto dom do entendimento...

 Do entendimento! Ah malignos!
vós, possuindo a razão,
tendes de vícios sem conto
recheado o coração.

Ah! Se a vossa liberdade
zelosamente guardais,
como sois usurpadores
da liberdade dos mais?

O que em vós é um tesouro
nos outros perde o valor?
destrói- se o jus do oprimido 
pela força do opressor

Não tem por base a justiça
funda-se em nossa fraqueza
a lei, que a vós nos submete,
tiranos da natureza

Em ofensa das deidades
em nosso dano, abusais
da primazia que tendes
entre os outros animais.

Mas, ah triste! Ah malfadado!
Para que me queixo em vão?
Que espero, se contra a força
de nada serve a razão?

Aqui parou de cansado
o volátil carpidor;
eis que vê chegar da caça
o seu bárbaro senhor.

Trazia encostado ao ombro
o arcabuz fatal, e horrendo,
e alguns pássaros no cinto,
uns mortos, outros morrendo.

Das penetrantes feridas
ainda o sangue pingava, 
e do cruento verdugo
as curtas vestes manchava

O preso vendo a tragédia,
coitadinho, estremeceu,
e de susto, e de piedade
quase os sentidos perdeu.

Mas apenas do soçobro
repentino a si tornou,
com os olhos nos seus finados
estas palavras soltou:

«Entendi que dos viventes
eu era o mais infeliz:
que outros têm pior destino
aquele exemplo me diz.

Da minha sorte já agora
queixas não torno a fazer:
antes gaiola que um tiro,
antes penar que morrer».


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