terça-feira, 30 de janeiro de 2018

"Quando esse esbelto corpo teu" - Poema de Aleksander Púchkin


Kees van Dongen, La robe rose (Ève Francis), c.1919



Quando esse esbelto corpo teu


Quando esse esbelto corpo teu
Entre meus braços aprisiono,
E às expressões deste amor meu,
Arrebatado, me abandono,
Das mãos prementes, sem um som,
O talhe airoso, sem detença,
Livras e me respondes com
Sorriso de funda descrença.
Lembrando com aplicação
Das mutações minha a história,
Pões-te a escutar-me, merencória,
Sem simpatia ou atenção.
Maldigo as proezas astuciosas
De minha juventude atroz
E as entrevistas amorosas
Nos jardins, nas noites sem voz.
Maldigo do oaristo os cicios,
Dos versos os encantos magos,
Das virgens simples os afagos,
O pranto e os queixumes tardios.

(1830)

Aleksander Púchkin, em "Poesias escolhidas"
Tradução de José Casado


Kees van Dongen, Femme aux bas noirs (Woman with black stockings), c.1907


"Nas ligações do coração, como nas estações, os primeiros frios são os mais sensíveis."



segunda-feira, 29 de janeiro de 2018

"Tercetos de amor" - Poema de Thiago de Mello


Charles Courtney Curran, Among the Wild Azaleas, 1908



Tercetos de amor


Só agora aprendi 
que amar é ter e reter. 
Foi quando te vi. 

Vi quando a rosa se abriu. 
Como a eternidade 
pode ser tão fugaz? 

Não sei quando é o mar, 
ou se é o sol dos teus cabelos. 
Tudo são funduras. 

Na entressombra, o sabre 
se estira na relva morna. 
O nenúfar se abre. 

Brilha um dorso: és tu. 
Encontro no teu ventre 
a explicação da luz. 


em "Num campo de margaridas", 1986


domingo, 28 de janeiro de 2018

"Uma gentileza" - Poema de Laura Riding





Uma gentileza 


Estar viva é estar curiosa. 
Quando perder interesse pelas coisas 
E não estiver mais atenta, álacre 
Por factos, acabo este minguado inquérito. 
A morte é a condição do supremo tédio. 

Vou deixar que me desintegre 
E aí, por saber da paz que a morte traz, 
Seria bom seguir convencendo o destino 
A ser mais generoso, estender, também, 
O privilégio do tédio a todos vocês. 

 
Laura Riding
, "Mindscapes - poemas"
Seleção, tradução e introdução de Rodrigo Garcia Lopes,
São Paulo: Iluminuras, 2004.
 

sábado, 27 de janeiro de 2018

"Quase um madrigal" - Poema de Salvatore Quasimodo


  Emile Claus (Belgian painter, 1849 –1924), 'The Village Pond, Upton Grey', c.1914



Quase um madrigal


O girassol se verga para o oeste
e já se afunda o dia no seu olho
em ruína e o ar de verão se adensa
e já encurva a folhagem e a fumaça
dos canteiros de obras. Afasta-se com o seco
fluir das nuvens e estrilar de raios
este último truque do céu. Outra vez,
como há anos, amiga, contemplamos
o cambiar das árvores espremidas
nos Navigli. Mas sempre é nosso o dia
e sempre o mesmo sol que se despede
com o fio de seu raio afetuoso.

Não tenho mais lembranças, nem as desejo;
toda memória se remonta à morte,
a vida não se acaba. Cada dia
é nosso. Um se fechará para sempre
e tu comigo, quando já for tarde.
Aqui no cais de pedra do canal, 
como crianças, balançando os pés,
olhamos a água, os primeiros galhos
cujo verde no fundo se escurece.
E o homem que em silencio se aproxima
não esconde uma faca em suas mãos
mas uma flor de gerânio.


Tradução de Geraldo Holanda Cavalcanti


quinta-feira, 25 de janeiro de 2018

"Final" - Poema de Pablo Neruda


Ditlev BlunckDanish artists at the Osteria La Gensola in Rome, 1837(version II)



Final


Foram criadas por mim estas palavras
com o meu sangue e com as dores minhas
foram criadas!
Tudo eu compreendo, amigos, eu compreendo tudo.
Misturaram-se vozes alheias às minhas,
tudo eu compreendo, amigos!
Como se voar eu quisesse e me chegassem
para me ajudar as asas das aves,
todas as asas,
assim vieram as palavras estrangeiras
desatar a ebriedade escura de minha alma.

É manhã, e parece
que não se me apertaram as angústias
em tão terríveis nós em torno da garganta.
E no entanto,
foram criadas,
com o meu sangue e com as dores minhas,
foram criadas por mim estas palavras!

Palavras para alegria
quando era meu coração 
uma coroa de chamas
palavras de dor que penetra,
e dos instintos que remordem,
e dos impulsos que ameaçam,
e dos infinitos desejos,
e das inquietudes amargas,
palavras de amor que em minha vida florescem
como terra roxa cheia de umbelas brancas.

Não caiam em mim, nunca couberam.
Menino minha dor foi grito,
foi minha alegria silêncio.

Depois os olhos
esqueceram as lágrimas
do coração de todos varridos no vento.

Agora, digam-me, amigos,
onde esconder aquela aguda 
fúria de soluços.

Diga-me, amigos, onde
esconder o silêncio para que ninguém
nunca o sentisse com os ouvidos ou olhos.

As palavras vieram e meu coração,
incontido como um amanhecer,
rompeu-se nas palavras, no apego do voo,
e em suas fugas heróicas o levam e arrastam,
adandonando e louco, e esquecido sob elas
como um pássaro morto, embaixo de suas asas.

1923

Pablo Neruda, em "Crepusculário".
[Tradução de José Eduardo Degrazia]


quarta-feira, 24 de janeiro de 2018

"As maçãs" - Poema de Eugénio de Andrade


Paul Cézanne, Still Life with Apples, 1893 - 1894



As maçãs 


Da alma só sei o que sabe o corpo: 
onde a esperança e a graça 
aspiram ao ardor 
da chama é a morada do homem. 
Vê como ardem as maçãs 
na frágil luz de Inverno. 
Uma casa devia ser 
assim: brilhar ao crepúsculo 
sem usura nem vileza 
com as maçãs por companhia. 
Assim: limpa, madura.




Paul Cézanne, Still Life with Apples and a Pot of Primroses, ca. 1890


"De boa árvore, bom fruto."



"Para a minha filha" - Poema de Joseph Brodsky


Luigi Amato (Italian painter, 1889-1961), Soap bubbles



Para a minha filha


Dai-me outra vida e estarei no Caffè Rafaella
a cantar. Ou estarei sentado a uma mesa,
simplesmente. Ou de pé, como um móvel no corredor,
caso essa vida seja menos generosa que a anterior.

Contudo, em parte porque nenhum século daqui em diante
conseguirá passar sem jazz nem cafeína, aguentarei esse desplante,
e pelas minhas rachas e poros, verniz e todo de pó coberto,
observarei, daqui a vinte anos, como a tua flor se terá aberto.

De um modo geral, lembra-te de que estou por ali. Ou melhor, que
um objeto inanimado pode ser o teu pai, sobretudo se
os objetos forem mais velhos do que tu, ou maiores. Não
os percas de vista, pois, sem dúvida, te julgarão.

Seja como for, ama essas coisas, haja ou não encontro.
Além disso, pode ser que ainda te lembres duma silhueta, dum contorno,
ao passo que eu até isso perderei, juntamente com a restante bagagem.
Daí estes versos, algo toscos, na nossa comum linguagem.


(Nobel de Literatura de 1987)


terça-feira, 23 de janeiro de 2018

"O gato lembra-se de ti nos intervalos" - Poema de Maria do Rosário Pedreira




O gato lembra-se de ti nos intervalos


O gato lembra-se de ti nos intervalos. Espera
de olhos acesos as histórias que nos contas.
Passeia-se inquieto sobre o meu parapeito e eriça
o pelo, cúmplice, quando pressente que regressas.

Chegas sempre de noite. Sei quem és e ao que vens
e ofereço-te o silêncio de um pequeno quarto recuado,
as sombras das traseiras na minha pele, o tempo
de repetir um gesto inevitável. Ouço-te contar
a mesma lenda com lábios sempre novos. Aprendo-a
e esqueço-a. Nunca a saberemos de cor, o gato ou eu.

Depois partes. Levas contigo a tua voz, mas a música
fica. Eu fecho as portadas devagar. O gato mia baixo
à janela. Ninguém acena: guardamos com os outros
o segredo das tuas visitas. Ambos. O gato e eu.




segunda-feira, 22 de janeiro de 2018

"Canção Báquica" - Poema de Aleksander Púchkin


Charles Courtney CurranHollyhocks and Sunlight, 1902



Canção Báquica


Que fez calar a alegre voz?
Ressoai, canções licenciosas!
Bem-vindas, moças carinhosas
E esposas tão jovens que amáveis a nós!
As taças enchei sem tardança!
No vinho a espumar,
No fundo, o jogar
Vinde (e ouvi-las soar) cada aliança!
Cada taça se erga, de vez seja finda!
Bem-vindas, ó musas; Razão, sê bem-vinda!
Astro sagrado, arde tu, sol!
Como o lampião empalidece
Ao claro surgir do arrebol,
Assim o saber falso hesita e esvanece
Ante o imortal sol da Razão.
Bem-vindo sê tu, sol; vai-te negridão!

(1825)

Aleksander Púchkin, em "Poesias escolhidas" 
Tradução de José Casado



Charles Courtney Curran, Among the Hollyhocks, 1904


A uva


Não choro, finda a primavera 
ligeira, a rosa que definha, 
pois, maturando numa vinha 
ao pé do monte, a uva me espera: 
primor do vale viridente, 
deleite do dourado outono,
tão diáfana e tão longo como
os dedos de uma adolescente.

(1824)

A dama de espadas: prosa e poemas. 
Tradução de Boris Schnaiderman e Nelson Ascher

domingo, 21 de janeiro de 2018

"O Inverno que vem" - Poema de Jules Laforgue


Charles Webster Hawthorne, Rainy Day, Provincetown



O Inverno que vem


Bloqueio sentimental! Despachos do Levante!...
Oh, cair da chuva! Oh! cair da noite,
Oh! o vento!...
O Dia de Todos os Santos, o Natal e o Ano Entrante,
Oh! na garoa, todos as minhas chaminés!...
De fábricas...

Não se pode mais sentar, todos os bancos, molhados;
Creia-me, tudo acabado até o ano que vem,
Todos os bancos, molhados, com os bosques embotados,
E assim as trompas sopraram ton ton, sopraram ton taine!...

Ah! nuvens vindas lá da Mancha,
Nosso último domingo, vocês mancham.

Está garoando;
As teias de aranha na floresta molhada
Vergam sob as gotas e ficam aruinadas.
Sóis plenipotenciários da lavoura
Em fontes de ouro
Dos espetáculos agrículas,
Onde estais sepultados? 
Esta tarde um sol que morre
Jaz no cume do morro
Jaz sobre o flanco
Nas giestas, sobre um manto.
Um sol branco 
Como tabuleta de boteco
Sobre uma liteira de giestas amarelas,
As giestas amarelas do outono.
E soam-lhe as trompas!
Que ele retorne...
Que a si próprio retorne!
Taïaut! Taïaut! e hallali!
Ó triste antífona, chegas ao fim!...
E fingem-se em folia!...
Ele alí jaz, como uma glândula arrancada de um pescoço,
E fremente, 
sem ninguém presente!...

Vamos, vamos e hallali!
É o Inverno conhecido que se avizinha;
Oh! as curvas das grandes estradas,
E sem o pequeno Chapeuzinho Vermelho que caminha!...
Oh! seus sulcos dos carros do outro mês,
Subindo em trilhas quixotescas
Rumo às patrulhas das nuvens em derrota
Que o vento maltrate os apriscos transatlânticos!...
Aceleremos, aceleremos, é a estação agora conhecida.

E o vento, nesta noite, fez das suas!
Ó ninhos, ó ruínas, ó jardins desgados!
Meu coração e meu sono: ó ecos de machados!...

Todos estes ramos ainda tinham folhas verdes,
Sob as plantas apenas um esterco de folhas mortas;
Folhas, folíolos, que vos leve um bom vento
Para os charcos, aos enxames,
Ou para o fogo dos couteiros,
Ou os enxergões das ambulâncias
Para os soldados longe da França.

É a estação, é a estação, a ferrugem invade as massas,
Rói a ferrugem em seus spleens quilométricos
Os fios telegráficos das grandes estradas onde nada passa.

As trompas, as trompas, as trompas – melancólicas!...
Melancólicas!...
Seguem, alterando o tom,
Alterando o tom e a música 
Ton ton, ton taine, ton ton!...
As trompas, as trompas, as trompas!...
Seguiram para o vento Norte.

Não posso deixar tal tom: que ecos!...
É a estação, é a estação, adeus vindimas!...
Com uma calma de anjo chegam as chuvas lá de cima.
Adeus vindimas e adeus a todos os cestos,
Todas os cestos Watteau feixes sob os castanheiros.
É a tosse, no dormitório da escola, que reentra,
É a tisana sem fogão,

É a tísica pulmonar contristando o quarteirão,
E toda a miséria dos grandes centros.

Milho, lanifícios, borracha, farmácia, sonhar,
Cortinas abertas nas varandas à beira-mar
Frente ao oceano dos telhados dos bairros,
Lâmpadas, estampas, chá, petits-fours,
Não sereis meus únicos amores!...
(Oh, e aliás conheces, além dos pianos,
O sóbrio e vesperal mistério hebdomadário
Das estatísticas sanitárias
Nos jornais?)

Não, não! é a estação e o planeta cómico!
Que a ventania, que a ventania
Desfia 
Os chinelos, pois o tempo se tricota!
É a estação, oh dilacerações! é a estação!
Todos os anos, todos os anos,
Tentarei em coro dar a nota.


em "Poetas franceses do século XIX". 
Tradução José Lino Grünewald


Charles Webster HawthorneRainy Day, San Antonio


"Enquanto o poço não seca, não sabemos dar valor à água."



"É necessário amar" - Poema de Alphonsus de Guimaraens


Guercino, The Angel appears to Hagar and Ishmael1652-3



É necessário amar


É necessário amar… Quem não ama na vida?
Amar o sol e a lua errante! amar estrelas,
Ou amar alguém que possa em sua alma contê-las,
Cintilantes de luz, numa seara florida!

Amar os astros ou na terra as flores… Vê-las
Desabrochando numa ilusão renascida…
Como um branco jardim, dar-lhes na alma guarida,
E todo, todo o nosso amor para aquecê-las…

Ou amar os poentes de ouro, ou o luar que morre breve,
Ou tudo quanto é som, ou tudo quanto é aroma…
As mortalhas do céu, os sudários de neve!

Amar a aurora, amar os flóreos rosicleres,
E tudo quanto é belo e o sentido nos doma!
Mas, antes disso, amar as crianças e as mulheres…


 em “Obra completa”.


sábado, 13 de janeiro de 2018

"Se há cães de sono" - Poema de António Ramos Rosa


Władysław Czachórski (Polish, 1850–1911), Resting Beauty


Se há cães de sono... 


Se há cães de sono que os meus pulsos rasgam
cães de dentes em lava,
se há algas nos teus olhos,
se escrevo no papel a baba dos teus beijos
nenhum vagar de sombra
nenhum campo natural do vivo olhar.

Se nos teus olhos vejo um vale,
se posso dizer casa, vento, nu,
nenhuma terra pousa sobre a terra,
sobre a mão que escreve
nem a sombra cai.
Que escrevo então, nudez sem corpo,
janela sobre um mar sem mar,
mão sem mão,
porque persigo um rastro sem faro, opaco e frio?
Que face ou região, círculo aberto,
página que no silêncio não ascende,
sopro que não sobe à boca, lua morta?
Se não te quero, imagem fútil,
luva de nada,
porque insisto no pálido círculo deste campo?

Se não há sol nem mãos que o arrebatem,
se árvores não vejo, nem destroços restam,
um tudo há de nascer, ou já nasce de nada,
de cães de raiva insones, cães insones?
Oh, dormir sem nada mais, dormir apenas,
dormir para acordar
como se houvera um acordar de vez.


António Ramos Rosa, in "Respirar a sombra viva"
Editor: Plátano Editora
 

sexta-feira, 12 de janeiro de 2018

"Há momentos" - Poema de António Mendes Cardoso





Há momentos


Há momentos na vida de um Homem
Em que sabe que acordou diferente
E que já não é o mesmo para ele,
Mesmo que o seja para toda a gente...

Há momentos na vida de um Homem
Onde só pode entrar uma Mulher
Aquela que lhe trouxer
A flor do sexo
Desenhada a vermelho no ventre
E nada lhe perguntar...

Há momentos na vida de um Homem
Onde só pode entrar uma mulher
Aquela que lhe trouxer,
Num abraço total,
A ilusão da vida inteira...
E, depois, partir
Com a esperança de vida que ele semeou...

Há momentos na vida de um Homem
Onde só pode entrar uma Mulher
Para todo o Mundo se resumir
À flor vermelha
Como um bocado de sol
Que desponta numa telha!


 em "Poemas de circunstâncias"
(1949-1960)


"Só sei cantar" - Poema de Thiago de Mello


Jacobus Hendrik Pierneef (South African, 1886–1957), Dar-es-Salaam, 1926



Só sei cantar


Sou simplesmente um cantor. 
Já disse que nada invento 
nem produzo formatos diferentes. 
Minha terra tem palmeiras 
onde canta o sabiá. 
Canto a luz da primavera, 
canto a chuva da floresta, 
canto a dor dos deserdados, 
e a alvorada da justiça. 
Canto o olhar da minha amada 
e as pernas dela também. 
Canto a plumagem celeste 
do tucano que me acorda 
e canto o peito encarnado 
do rouxinol que chegou 
dos altos do Rio Negro 
para ver de perto o vôo 
das pipiras azuladas. 
(Alguns, da arte só pela arte, 
me torcem a cara quando 
canto em nome do meu povo 
a aurora da liberdade.) 
Canto o que suja e o que lava, 
canto o que dói e o que abranda, 
canto a rosa e seu espinho 
e a cantiga de ciranda 
que se faz de fogo e neve, 
canto o amor, de novo canto, 
só para aprender a amar. 
Mas não canto o que bem quero 
pelo gosto de cantar 
que às vezes sabe a desgosto. 
Canto o que a vida me pede, 
imperiosa ou macia, 
porque sabe que cantar 
é um modo de repartir. 
Sou poeta, só sei cantar. 
em "De uma vez por todas", 1996


quinta-feira, 11 de janeiro de 2018

"Poema conformista" - Poema de Torquato Neto


Claude Monet, The Studio Boat, 1876


Poema conformista


Nunca escorreu pelo meu corpo a aurora,
nunca senti na minha boca o traspassar de noites,
nunca dormi ao lado das estrelas – que isto
são coisas absolutamente sem importância
que, de resto, outros sonhadores
já tiveram o cuidado de sonhar.
Eu em mim
incrivelmente existo e me basto.

O temer e o esperar passaram por completo.
E a vontade de ver o invisível
e tocar o intocável
e calcular o necessariamente incalculável
também passaram e não prossigo nisto.
Sou exatamente o que me basto para continuar
sendo.
E nisto me basto.

Quando não pude alcançar o lado oposto
e me perdi e não voltei atrás,
eu prossegui pelo caminho e não parei.
Quando na volta preferi vir só
eu me bastei com meus distensos músculos
e não cortei demais a minha carne
em pedaços inúteis.

Minha incerteza quando dói a afasto
e não me engano em pensar o que não posso
nem me abandono a construir filosofias que a
encharquem.
Se não componho as sinfonias que escuto
ninguém o sabe: eu não sou músico.
Quando não sei se devo ou se não devo prosseguir
em escrever poemas e asneiras,
eu nada faço e me recolho: o poeta que não sou
pode nascer ainda.

Como o dedo apagaria o sol
congelaria a aurora no meu corpo
e afastaria estrelas – mas não quero,
outros sonhadores já sonharam isso.
Como eu disse, sou exatamente o que me basto
para prosseguir,
e não quero mais.
 em "O Fato e A Coisa"


quarta-feira, 10 de janeiro de 2018

"Rios" - Poema de Viviane Mosé


Charles Courtney Curran, Lotus Lilies, 1888


Rios


Rios, quando ainda são rios,
Conservam vegetação nas margens.
Córregos são águas geralmente claras
Que correm rasas entre as pedras.

Algumas vezes árvores chegam a cobrir um rio por inteiro:
Suas copas vão tecendo um véu verde sobre as águas
(em geral muito limpas) que correm.

As margens de um rio são plantas e terra molhada.
Terra e água em convivência pacífica.
Que não é lama, é terra e água,
Em sua diferença.

O leito se sabe leito daquele fluxo líquido inserido no chão. 
Eu poderia chorar de coisas assim:
Corre um rio de minha boca corre um rio de minhas mãos.
Dos meus olhos corre um rio.

Na verdade sofro de excessos, que me dão certo vocabulário
Como derramar, escorrer, atravessar.
Tenho a impressão de que tudo vaza em sobras.
Tenho dificuldade em caber. 

Pra caber mais derramo por nada derramo sem motivo.
Vou acalmar meu excesso pensei
Ministrando doses diárias de barcos ancorados ao sol,
Rodeados por pequenos pássaros em busca de restos de peixe.

Águas se lançando sobre as pedras e um vento que parece vivo,
Como se tivesse a intenção de às vezes fazer agrados
Em minha pele.

Meu rosto tem muita simpatia por ventos,
Reconhece certos humores próprios a vento.
Gosto de coisas que se movem.

Por isso aprecio rios e não sou tanto assim apegada a mares.
E árvores.
Se bem que tenho enorme ternura por bois
Fincados no pasto como palavras no papel.

Palavras são estacas fincadas ao chão.
Pedras onde piso nessa imensa correnteza que atravesso.


Viviane Mosé, em "Toda palavra"


Charles Courtney Curran, Dans le Jardin du Luxembourg, 1889


"Ninguém ainda sabe se tudo apenas vive para morrer ou se morre para renascer."



terça-feira, 9 de janeiro de 2018

"Metanáutica" - Poema de Geir Nuffer Campos


David Botha (South African, 1921–1995), Wet street scene, Paarl, 1982


Metanáutica


Deixa-te ser viável como um bosque 
ou jardim ou pomar por onde possa 
ir passando a pessoa pela sombra 
ou pela flor ou pelo fruto ou pela 
singular vocação ambulatória: 
deixa-te ser viável como um rio 
ou lago ou mar por onde possa ir 
passando o navegante ou nadador 
pelo afã de chegar ou pelo puro 
sentir-se em ti flutuante ou imerso: 
deixa-te ser viável como um ar 
por onde possa ir passando a asa 
que como tal se procure ou encontre 
firme ou frágil... Mas bosque ou jardim ou 
pomar ou rio ou lago ou mar ou ar, 
deixa em ti lecionar-se o transeunte 
que viver são instâncias de passar. 


in 'Metanáutica'


David Botha, 'Cecilia Street after the Rain', 1978


"Os acasos só favorecem os espíritos preparados."



"A mais perfeita imagem" - Poema de Ana Luísa Amaral


Robert Frederick Blum (American, 1857-1903), Courtyard, 1883



A mais perfeita imagem


Se eu varresse todas as manhãs as pequenas 
agulhas que caem deste arbusto e o chão 
que lhes dá casa, teria uma metáfora perfeita para 
o que me levou a desamar-te. Se todas as manhãs 
lavasse esta janela e, no fulgor do vidro, além 
do meu reflexo, sentisse distrair-se a transparência 
que o nada representa, veria que o arbusto não passa 
de um inferno, ausente o decassílabo da chama. 
Se todas as manhãs olhasse a teia a enfeitar-lhe os 
ramos, também a entendia, a essa imperfeição 
de Maio a Agosto que lhe corrompe os fios e lhes 
desarma geometria. E a cor. Mesmo se agora visse 
este poema em tom de conclusão, notaria como o seu 
verso cresce, sem rimar, numa prosódia incerta e 
descontínua que foge ao meu comum. O devagar do 
vento, a erosão. Veria que a saudade pertence a outra 
teia de outro tempo, não é daqui, mas se emprestou 
a um neurônio meu, unia memória que teima ainda 
uma qualquer beleza: o fogo de uma pira funerária. 
A mais perfeita imagem da arte. E do adeus. 


Ana Luísa Amaral, in 'A Arte de Ser Tigre'


segunda-feira, 8 de janeiro de 2018

"Toda palavra" - Poema de Viviane Mosé


Alexander Calder (American, 1898-1976), Red Nose, 1969, lithograph, edition 75



Toda palavra 


Procuro uma palavra que me salve
Pode ser uma palavra verbo
Uma palavra vespa, uma palavra casta.
Pode ser uma palavra dura. Sem carinho.
Ou palavra muda,
molhada de suor no esforço da terra não lavrada.
Não ligo se ela vem suja, mal lavada.
Procuro uma coisa qualquer que saia soada do nada.
Eu imploro pelos verbos que tanto humilhei
e reconsidero minha posição em relação aos adjetivos.
Penso em quanta fadiga me dava
o excesso de frases desalinhadas em meu ouvido.
Hoje imploro uma fala escrita,
não pode ser cantada.
Preciso de uma palavra letra
grifada grafia no papel.
Uma palavra como um porto
um mar um prado
um campo minado um contorno
carrossel cavalo pente quebrado véu
mariscos muralhas manivelas navalhas.
Eu preciso do escarcéu soletrado
Preciso daquilo que havia negado
E mesmo tendo medo de algumas palavras
preciso da palavra medo como preciso da palavra morte
que é uma palavra triste.
Toda palavra deve ser anunciada e ouvida. 
Nunca mais o desprezo por coisas mal ditas.
Toda palavra é bem dita e bem vinda.


Viviane Mosé, em "Toda palavra"


Alexander Calder, Papoose, 1969, lithograph, edition 75


"Desenhar é como fazer um gesto expressivo mas com a vantagem da permanência."

Alexander Calder, Copeaux de couleurs, 1969, lithograph